Diziam que o inverno era uma época branca, quando as casas e as ruas ficavam cobertas por neve. Diziam que o inverno era um período de amor, romântico, quando as pessoas andavam em casais e passavam tardes curtindo uns aos outros. Mas não era assim. Não o meu inverno. Tudo estava cinza. Parecia que tudo tinha perdido seu 'sabor'. Tudo tinha cheiro de mortadela. Bizarro... eu sempre gostei de mortadela, mas estava ficando enjoativo. Talvez porque minha mãe cismasse em fazer o mesmo café da manhã todo dia.
Meus amigos, todos felizes. Não nego que eles tentaram me ajudar... Mas de nada adiantou. Cada momento parecia o mesmo. Até aquele dia no zoológico quando meu melhor amigo insistiu para que fossemos lá foi tedioso. E tudo que faria qualquer pessoa rir aconteceu: uma mulher tirou suas roupas e saiu correndo por todo o lugar dizendo que o elefante tentou estuprá-la, um senhor idoso levou seu cachorro para passear e o cão atacou um coelho que saiu de sua 'cela' e se escondeu debaixo da saia de uma garota de 11 anos... Enfim, nada disso conseguiu colocar um sorriso em meu rosto.
Certa vez me perguntaram o motivo de tanta tristeza: "não sei". Idiotice. Claro que sabia! Não queria dizer qual o problema e fazer com que todos ficassem atrás de mim, dizendo que tudo ia passar e todas aquelas coisas que sempre acontecem quando você perde alguém que você ama. Sim, esse era o problema. Ninguém havia morrido, de fato. A pessoa estava cada vez mais longe. Ela estava ali e não estava. Ora parecia uma perfeita réplica de cera de meu irmão, ora parecia um fantasma que sussurrava consigo mesmo cada hora do dia.
Uma pessoa começava a faltar em minha vida. Logo essa pessoa. Meu irmão. Meu melhor amigo. Foram 17 anos juntos. Vivendo juntos. Já compartilhamos garotas, embora elas não saibam disso. E toda a amizade que temos/tivemos parece estar acabando. Toda vez que ele chega em casa do colégio - estudamos na mesma sala, mas ele sempre fica um pouco mais na rua - ele se esconde no quarto e fica à janela olhando nada. É essa a impressão que ele passa: fica parado com os olhos abertos, fixados em nada! Toda vez que tento conversar sobre meu dia, sobre uma garota que eu fico há alguns anos e que penso em namorá-la, ou sobre qualquer coisa que geralmente a gente conversaria ele vira pra mim e diz que eu só tenho que ser feliz! E pede, por favor, que eu prometa que viverei cada dia como se ele fosse o último. Era impossível entender o que ele queria dizer com isso. O inverno quase acabando e ele continuava com essa mesma história todo dia.
Penúltimo dia de inverno. Estava muito frio. Pela primeira vez em todo aquele tempo eu comecei a sentir algo diferente. De alguma maneira, não sei se real ou ilusória, conseguia ver o verde das árvores, depois de dias cobertas com uma manta branca. Minha mãe havia colocado algumas flores em cima da mesa, pois, segundo ela, o clima na casa estava muito tenso. Perguntei o que era: "nada... problemas da vida". Comecei a achar que minha mãe também estava ficando estranha. Todos pareciam estar se distanciando do mundo. Pareciam querer fugir de algum problema. Menos meus amigos e minha namorada - pedi a garota da qual falava para o meu irmão em namoro alguns dias atrás - que ficavam mais próximos de mim a cada dia. Fui ver meu irmão. À janela como sempre. Nada dizia. Aproveitei o tédio e dormi.
Último dia de inverno. Acordei. Fui à aula. Nenhum dos meus amigos estavam lá. Nem meu irmão, nem mesmo minha namorada. Havia um som de silêncio ensurdecedor, porque nem o professor conseguia dar sua aula. Toda vez que tentava dizer alguma coisa, uma lágrima corria pelos seus olhos. Voltei pra casa, depois de uma manhã estranha em demasia. Nunca vi minha morada tão cheia! Perguntei o que aconteceu e ninguém respondia! Encontrei meus amigos: calados. Fui até meu quarto. No corredor, no meio do caminho, encontrei minha mãe: vermelha de tanto chorar. Cheguei no meu quarto: minha namorada abraçada ao meu melhor amigo encharcando sua camisa, como se seus olhos fossem duas quedas d'água. Algumas pessoas cercavam minha cama. Cheguei perto dela pra saber o que houve e tive uma vista que nunca pensei ter. Parecia meu irmão quando olhava para o nada. Fiquei com os olhos abertos e fixados em meu corpo, ao me ver deitado em minha cama, pálido como se nunca tivesse saído à luz do sol.
Todos os indivíduos naquela casa foram começando a sumir. Primeiro as pessoas que eu quase nunca via, depois aquelas distantes mas presentes de certa forma, em seguida meus amigos e parentes, sobrando meu irmão, minha mãe e minha namorada. Entre os três, antes foi minha mãe, que, momentos antes de tudo desaparecer, havia entrado no quarto dado um beijo em minha testa e sentado perto a mim. Havia sobrado meu melhor amigo e minha melhor amiga - antes de ser minha namorada, ela era a garota em quem eu sabia que teria o maior apoio possível para tudo que precisasse. Eu continuei em pé no quarto. De algum jeito, que não sei explicar, os dois, segundos antes de sumir, olharam em minha direção - não do corpo, mas do ser ou da criatura ou da coisa que estava em pé ali no cômodo. Ele deu um sorriso para mim e ela abriu seus olhos o máximo que pôde e virou seu rosto para o meu irmão em seguida.
Todos sumiram. As paredes começaram a desaparecer. Depois foi a paisagem em volta da minha casa. Por último o chão onde eu estava. Fiquei no meio de um universo branco. Tudo parecia infinito mas finito ao pensar que não tinha pra onde ir. Dou meia-volta e encontro uma cama. A minha cama. Vazia de pessoas. Tinha somente um travesseiro e um cobertor, ambos brancos, em cima dela. Como não tinha nada para fazer, fui-me deitar. Pensei um pouco e percebi que tudo era um pouco estranho. De certo modo, meu inverno terminou branco e 'amado' - os olhares finais de meu irmão e de minha namorada, assim como ver o beijo que minha mãe deu em minha testa transmitiram a mim todo o amor que uma pessoa precisa em toda a sua vida.
Enfim, rolei um pouco na cama até relaxar. Senti um sorriso sendo projetado em meu rosto. Relaxei. Dormi. Nunca mais acordei.
Andrei Ferreira
27/10/2010